Saturday, December 17, 2005

Mas não era só a partida do falecido que deveria ser arranjada. Também deveria dar-se um fim as coisas que ele deixara para trás. Clarice marcou uma reunião em uma manhã de quarta feira para discutir o testamento com Doutor Henrique Ferraz, o advogado de seu pai. Ela foi recebida em uma sala de espera aonde folheou uma revista Caras, limitando-se a ressentir os rostos sorridentes e as poses forçadas que tentavam, sem muito esforço, recriar atividades cotidianas. Depois de ler sobre o difícil divórcio de alguma celebridade loura (ilustrado por mais um sorriso e uma citação em um quadrado vermelho), ela foi anunciada formalmente por uma secretária de salto agulha e encaminhada, por um corredor de placas de fórmica, até a sala de Doutor Henrique. Ele estava acomodado em uma cadeira de couro que de tão velha e gasta parecia ter sido esculpida para envolver cada dobra e ruga de seu terno. Seus olhos acompanharam a entrada de Clarice por cima de uma folha de papel amarelada que ele segurava na altura do nariz, onde óculos de aro quase invisível se equilibravam precariamente. Ela se perguntou por que sentia-se inclinada e irracionalmente desconfiar de homens de óculos de aros muito finos. Foi convidada a sentar-se em uma cadeira acolchoada em frente à mesa. A cadeira de Doutor Henrique parecia ser o único móvel antigo no escritório, que aparentava ter sido re-decorado (com gosto duvidoso) recentemente. Diversos diplomas e honrarias enfeitavam as paredes estéreis, mas Clarice não se deu ao trabalho de ler as credenciais acadêmicas daquele homem que lhe parecia tão desinteressante. Ela tirou os óculos escuros e ficou aliviada ao ver que o homem parecia ter pressa, sem tempo para condolências ou observações climáticas. Doutor Henrique era um homem de poucas palavras e havia pouquíssimo a ser dito – o testamento era muito simples e direto: O Sr Jair Zahara deixava todas suas posses para sua única filha Clarice Cunha Zahara, filha de sua amada falecida esposa Susana Cunha Zahara. As posses do pai de Clarice foram desprovidas de qualquer surpresa uma vez que ele havia discutido, contra a vontade dela, todos esses detalhes antes de se submeter à cirurgia que Clarice recusava a ver como algo possivelmente letal. Uma boa quantia em dinheiro, seu apartamento na Rua Santa Clara ( que Doutor Henrique providenciaria alugar), um velho Del-Rey e uma casa em Tiradentes – esse era, resumidamente, o legado de Jair Zahara. O advogado comentou que Clarice era “sortuda” porque sendo a única família que Jair tinha, se via livre do doloroso processo da partilha. Clarice desejou ter um irmão ou uma irmã com quem brigar pela velha coleção de LPs de bolero que um dia pertencera a seu pai. O testamento também instruía os procedimentos quanto ao enterro – Jair queria ser enterrado no Cemitério São João Batista junto a Susana, sua falecida esposa. Não queria ser cremado, por motivos simples que havia exposto para Clarice em sua última conversa – “não quero acabar num vasinho em cima do seu aparador”, o que realmente não poderia acontecer já que Clarice não tinha um aparador. Mas ele não sabia disso, na verdade seus conhecimentos a cerca da vida de sua filha eram um tanto quanto remotos. Era um pai orgulhoso e comparecia, com palmas animadas e olhos brilhantes, as performances de sua filha, apresentando ela aos amigos, gabando-se de seus dotes artísticos que ele afirmava terem sido herdados dele. Mas fora isso, não participava ativamente da vida dela e não fazia qualquer esforço para tal. Clarice nunca correu para ele com qualquer problema sob seu braço, e ele não esperava que ela fizesse isso, tinha consciência de que ela sabia que ser mais forte do que ele. Como poderia um pai ser de qualquer auxílio a uma filha mais forte que ele? A mulher que ele deveria ter protegido estava morta e ele não se sentia capaz de tentar de novo. Apesar de tudo, Jair não exibia nem o mais vago traço de amargura e sim uma inocência juvenil - e coube a Clarice se amargurar e se ressentir por ele. Ela seguia, com a cara fechada e o dedo erguido, apontando a ele todas as previsíveis decepções, se desprovendo de seus próprios sonhos para que Jair pudesse se agarrar aos deles.

Clarice sentou se na cama usando o vestido preto no qual, há um dia atrás, havia testemunhado o enterro de seu pai. Encarou os primeiros raios do sol filtrados pelos seus óculos escuros; ela nem percebeu que ainda os usava. No enterro, um cortejo pequeno de poucas pessoas escutou um padre ter suas palavras arrastadas por um vento insistente e frio. Clarice se irritava com o homem de batina, que estava ainda sobre o efeito da sua viagem ao Vaticano - feliz, altivo e orgulhoso por ter sido tão bem recepcionado pelo Papa. Ele falou sobre o paraíso, o vale das sombras e o futuro reencontro de todas as almas no dia do julgamento final. Ela ria-se imaginando o re-encontro dela com seu pai, ele apontando para seus pés mostrando um par de sapatos feios e perguntando “Adivinha quanto custou? Ah, não, vai, chuta um valor!”. Ele nunca gabava-se de seus bens materiais pelo que eram, mas por quanto haviam custado ou a quanto tempo ele os tinha. Visitar um shopping com ele era um longo exercício de adivinhação no qual ele apontava um item qualquer em uma vitrine e pedia palpites quanto ao preço “dessa mesma coisa” na Rua da Alfândega. Clarice freqüentemente chutava um valor igualmente elevado só para vê-lo rindo exclamar “Não! Menos! Metade! Metade do preço, Clarice!” Ele comprava mercadorias em que a única garantia era a palavra de honra de um camelô.

Jair foi enterrado junto com Susana, em um jazido que havia sido comprado ( em uma promoção ) logo após a morte dela. Fátima, a mãe de Jair, estava enterrada naquele mesmo cemitério, mas longe o bastante para que o feliz casal tivesse sua eterna privacidade. O pai de Jair, Amir, estava enterrado em um cemitério cristão em algum lugar em Damasco, em um jazido destinado a família Zahara. Durante o enterro Clarice olhou ao redor concluindo que não conhecia muitos dos presentes e esses não sentiram a necessidade de se apresentar uma vez que todos eles pareciam saber muito bem quem ela era e lembravam, em embaraçosos detalhes, o quanto ela era adorável quando criança. Ela recebeu os pêsames comovidos de desconhecidos que a observavam de rabo de olho com uma piedade normalmente destinada as vítimas de minas terrestres e crianças de rua famintas. O pai havia sido claramente ofuscado por sua filha órfã.

Após o enterro Clarice se pós ao volante de um Del-Rey, uma de suas heranças recentemente adquiridas. No carro, da “cor-de-burro-quando-foge”, Clarice encarnou o luto por seu pai na forma de volumosas lágrimas, as primeiras desde a morte dele. Ela dirigiu e chorou a noite toda, as lágrimas borrando o rímel e formando longos filetes negros em suas bochechas pálidas. Não sabia exatamente por quem chorava, se era por ela ou por ele. Dirigiu o velho carro de seu pai improvisando seu trajeto por Copacabana, São Cristóvão e Catumbi, indiferente a sempre mutante paisagem a seu redor. A morte dele não só trazia a dor por aquela perda, mas também resgatava, em um deja-vú entorpecido, as memórias da morte de sua mãe. Ela conhecia bem tudo aquilo que novamente vinha à tona depois de anos. Esse era o medo de Clarice, o que ela temia não era o desconhecido do futuro, como algumas pessoas, mas sim a repetição do passado. O som de seus soluços ouvidos somente por ela fez que sentisse uma auto-piedade que não experimentava há muito tempo. Detestou-se por sentir pena de si mesma, tentou convencer-se que de alguma forma merecia tudo aquilo. Culpar-se era a solução de muitos dos problemas de Clarice; a sua capacidade de se sobrecarregar como fonte causadora de todo o mal era tão grande que até algo tão inevitável quanto a morte recaía sobre suas costas. Não era uma questão de ela ser a culpada por aquilo exatamente – ela era culpada de outras coisas, e a morte dele era uma projeção dessas outras coisas, uma sombra de erros do passado que se projetava no futuro.

Monday, December 05, 2005

1

“Ensina-nos a contar os nossos dia, de tal maneira que alcancemos corações sábios” (Psa.90.12)

“Seems so easy
Just to let it go on by
Till you stop and wonder
Why you never wondered why”
(Nick Drake – “Fruit Tree” )

(“Parece tão fácil
Deixar passar e não ver
Até que você para e se pergunta
Por que você nunca perguntou por que”)



A porta abriu-se quebrando um silêncio que parecia perdurar a séculos naquele quarto. A poeira dançava, como só a poeira sabe dançar, em um único raio de luz que se estendia do seu delta luminoso na janela, que um dia havia sido branca, até o chão, formando um pequeno quadrado amarelado no carpete marrom. Um violão de madeira escura, faltando uma das cordas Mi, encostava-se contra a parede no mais completo abandono. Clarice passou os olhos embaçados pelo quarto, reconhecendo o terreno; tudo estava exatamente como ela deixara há um dia atrás, mas também, como poderia ser diferente? Caso tivesse sido diferentes talvez ela tivesse trocado as cordas do violão, quem sabe até tirado um dia para pintar o batente de sua janela ou deixar-se ensurdecer pelo som do aspirador de pó. Poderia ter cortado suas unhas do pé, ou pintado as da mão de alguma cor audaciosa, aprendido a programar o vídeo K7 ( que ela agora chamava de “vídeo-é-o-cacete” pois ambicionava um aparelho de DVD ). Mas todas essas atividades, que agora pareciam muito agradáveis, haviam sido adiadas mais uma vez, por motivos de força maior e motivos de fim de forças. Na pequena cozinha, abriu a geladeira e encarou suas entranhas frias e vazias, o que não a incomodou uma vez que ela só queria água e água encontrou. Encheu seu copo até a borda e ao sair deslizou os dedos pelo interruptor que acendia a luz do quarto. Porque jamais abria as janelas e aproveitava a luz do sol? Não se tratava de uma preferência pela lâmpada 400s Walt, abrir a janela simplesmente nunca passava por sua cabeça – apertar o interruptor era mais natural, uma vez que ela só ficava ( acordada e consciente ) no apartamento durante a noite – o dia e as suas horas encharcadas de luz pertenciam a Orfeu.
Sobre a TV um calendário com o dia 18 de agosto marcado em vermelho, um lembrete do que a mantivera quase sempre fora de casa naqueles últimos dias, lembrete do cheiro de éter nos corredores largos e estéreis, das faces indiferentes de enfermeiras de mãos indelicadas, as horas da vigília silenciosa gastas encarando os pingos silenciosos do soro, o psicólogo cuja idiotice o imunizada contra as tiradas sarcásticas de Clarice. “Eu sei como você se sente”. Mas é claro que não sabia. Nada a irrita mais do que pessoas com a pretensão de aliviar a dor de outras através de uma compreensão inexistente, especialmente naquele caso, sendo o pretensioso um perfeito estranho. Beira o desrespeito achar que o impacto da morte de um pai pode ser diluído por observações jungianas, ou qualquer outra forma de articulação racional. O padre não a irritava tanto, ela sabia que sua dor transcendia a percepção lógica da realidade tanto quanto a fé dele em Deus. Consolava ela, mas sem esperar que ela fosse consolada, era gentil, tinha as mãos rudes e pequenas, que constantemente se acariciavam. Os médicos também não despertavam raiva nela, com suas explicações complicadas que Clarice não se esforçava para entender. Para ela não fazia diferença entender o funcionamento de um rim ou o que leva uma infecção a se tornar incontrolável. Também não se aliviou em nada quando lhe informaram que ele havia morrido sem sentir dor. Que diferença poderia fazer o jeito como ele se sentia quando estava tão perto de não sentir mais nada?
É impressionante o quanto uma morte é trabalhosa para os remanescentes vivos ao redor dela. São muitas as coisas a serem feitas e Clarice se ocupou de todas elas com uma energia maníaca, quase ignorando as implicações pessoais de suas ligações para funerárias, advogados e parentes há muito esquecidos. Usou a mesma postura que os médicos haviam usado ao dar a notícia; adotava uma voz baixa e calma, narrava o acontecido ilustrando tudo com jargões médicos, dizia o mesmo a todo, guiada por algumas palavras-chave: auto-imune, glomerulonefrites, infecção, colapso. Sempre tentava desligar o telefone antes das interjeições de piedade para a pobre órfã Clarice, que não está sozinha no mundo por poder contar com o infindável amor desses estranhos dos quais as lembranças das faces são menos claras do que a do gosto dos salgadinhos consumidos nos encontros familiares em que os viu pela única vez em sua vida. Clarice recusava gentilmente toda a ajuda que lhe era oferecida para os preparativos do enterro ou do funeral. Ela supunha que caso se mantivesse o mais ocupada possível não teria tempo para lamentar a morte de seu pai. De fato, tão atarefada estava que não lhe sobravam horas para sentar-se no escuro encharcando álbuns de fotografia com lágrimas. Clarice tinha plena consciência de que esse ritual era inevitável e só poderia ser, no máximo, atrasado. Conforme a data do enterro se aproximava ela se tornava cada vez mais inquieta, prevendo o tão adiado confronto com o fantasma do homem que ela enterrava. Mesmo assim, fez de tudo para protelar esse momento, constantemente remarcando datas e horários, fazendo questão de rosas vindas de Barbacena, esforçando-se para localizar o padre da congregação que seu pai freqüentava –o padre encontrava-se no Vaticano batalhando a canalização de algum homem que ele clamava ser santo.
"Clarice Está Partindo" é um livro que surgiu de um roteiro que eu escrevi no ano passado. No cinema italiano é muito comum que primeiro se escreva uma novela, que depois se transforma em um roteiro. O meu caminho foi o inverso, o que realmente me fui muito útil e bom já que escrevo muito guiada por imagens de qualquer forma, imagens que podem nem ser tão interessantes vistas em uma grande tela, mas que ganham profundida transcendental e metafísica na linguagem literária. Vou postar o livro, que ainda não terminou, aos poucos aqui, dia sim, dia não. Espero que gostem.


J.